terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

Homem sem talento

Aqui vai uma mini peça ou um grande solilóquio que escrevi em 2002 para jamais ser publicado ou encenado. Os tempos eram outros, os demônios eram diferentes, mas não muito.

Homem sem talento - Sou eu sim. Sou eu quem vocês estavam procurando. Não deu muito trabalho, eu sei. Mas eu tentei me esconder. Juro. Sem querer ser cínico, mas tenho que dar os parabéns pela sua investigação e busca. Nunca vi uma operação com tantas pessoas. É uma pena que nenhum jornal queira publicar captura e execução. É sempre assim, matéria de capa quando alguém comete um crime e, com alguma sorte, uma pequena nota quando o criminoso é executado
Mas agora vou dar um motivo para que eles mudem de idéia. Pode ser que não adiante nada, mas eu tentei, como tudo na minha breve existência neste deprimente reino encantado.
Vou confessar tudo, e vocês vão adorar que eu confessei. Era o que vocês queriam, não era? Vou dar isso de presente pra vocês. Mesmo sem colocar nenhum dedo em mim, já digo que chega! - a tortura já foi demais. Eu não posso agüentar nem mais uma palavra, então, podem ficar descansados. Eu confesso: sou eu mesmo. Eu sou um homem sem talento.
Fui abençoado, ou amaldiçoado, não sei dizer a diferença, apenas com a ilusão de ter algum dom. Ainda sofro deste mal. Mesmo quando vocês estiverem prestes a me guilhotinar, estarei com essa idéia fixa. Apesar de confessar, sou insano demais para reconhecer meu crime, porque não o vejo. Foi esta a minha falha sempre... desde o início. Fui um louco em não ver isso. E ainda sou. Então sei que cometi um crime porque vocês não param de dizer isso. Portanto passa a a ser verdade. Para dar ainda mais credibilidade, isso ficou escrito. Eu, e apenas eu na minha loucura, sei que é mentira, mas isso não interessa. Afinal, eu falei que era louco, e isso não passa de um devaneio.
Vocês não se cansam de endeusar Kafka e seu Joseph K.. O próprio Kafka nem queria ser endeusado, pra início de conversa. Ele queria ser, e era, Joseph K.. Isso todo mundo parece saber, mas não entende. Eu entendo. E é por isso que não quero endeusar Kafka. Por que ele ficou na mesma merda que eu estou agora. A merda dos fracassados. Vocês adoram dizer que o Joseph K. é um pobrezinho, "olhem, o sistema está esmagando Joseph K.. temos que fazer alguma coisa". E fazem, vocês fazem o papel do sistema, só que hipócrita, por que falam que pessoas como Kafka eram coitadinhos geniais. Eu não. Não sou coitadinho e muito menos genial. Kafka iria me adorar, iria me endeusar.
É por isso que, na minha loucura, eu não quero inverter esta situação aqui. Eu não quero que vocês morram. Não, eu quero que vocês existam. É preciso que vocês existam. Só peço que me deixem existir também. Que vergonha... estou aqui ... me humilhando. Também que se foda, não me custa nada me humilhar. Aliás, não adianta nada também, mas eu quero. Quero descer mais, quero chegar no fundo do poço e lá cavar minha própria cova. "Famous last words..." não é assim que dizem? Só espero que eu não fique apenas na categoria de "last words". Mas é o que vai acontecer, já não tem mais remédio.
Não tenho mais esperanças. Posso até tentar me conformar com as histórias de vidas como a de Edgar Allan Poe, que morreu na merda, de Van Gogh que morreu na merda, de Orson Welles, que não morreu tanto na merda, mas era alguma merda mesmo assim. Não, eu olho para mim mesmo e não tenho esperança nenhuma. Meu legado será a merda, morrerei na merda, ponto final.
Eu estou divertindo vocês o suficiente? Poderia ser mais engraçado? Perdão, nem essa capacidade eu tenho. Lembrem-se, sou um homem sem talento, portanto vocês podem até gostar deste meu longo epitáfio, que antes de ser escrito já está coberto de musgo. Mas vão achar chato e sem graça, porque eu não tenho talento, não se esqueçam. Foram vocês que falaram isso. Então tenham pelo menos a decência de serem coerentes.
A essas horas, depois de tudo o que falei, alguém de vocês já deve estar pensando: "não, não é bem assim, a gente nunca achou que ele não tinha talento", e completarão com alguma frase que seja pior do que não ter talento. Alguma gracinha, algo "talentosamente" engraçado e todos rirão sem culpa. Por favor, não me entendam mal, em nenhum momento quis jogar a culpa sobre vocês. Não importa o que eu diga, nada vai evitar os comentários maldosos que se seguirão, então não tentarei lhes convencer do contrário. Aceito todas as acusações que quiserem impor sobre mim. Digam o que quiserem, eu aceito. Minha loucura não me permite concordar sinceramente com nenhuma de suas gracinhas talentosas, mas aceito, porque não preciso saber o que você pensam. Estou condenado e isso me basta. Para um condenado, não importa qual a acusação, importa apenas o fato de que ele foi condenado. E esse sou eu.
Pronto. Já confessei. Espero que vocês tenham gostado. Espero ter trazido algum alívio. Algum prazer. Como? Mais prazer ainda? Tudo bem, repito a frase que vocês mais adoraram: Sou um homem sem talento. Gostaram? Eu fui o mico de circo que vocês queriam? Pedem para que eu faça alguma gracinha e eu, pronto para atender, faço. Mas só vou fazer isso uma vez. Se eu atender a mais um pedido seu, passarei a ter um pingo de talento. E ninguém aqui quer isso, quer?
Não sou seu palhaço. Um palhaço teria algum talento. E além do mais, alguém ser palhaço de alguém é uma mera questão de ponto de vista.
Agora, já basta. Podem me levar para a guilhotina. Mas por favor, prestem muita atenção no resultado da minha decapitação, pois vocês estarão vendo minha cabeça se transformar num corpo independente, livre. Por essa ironia eu lhes agradeço, pois ela me serve de cura para insanidade.
Como condenado, tenho direito a um último pedido? Não? Era de se esperar. Tudo bem. Já tenho agora tudo o que preciso.
Deixem-me então olhar para vocês uma última vez,e, por favor, não desviem seus olhares. Continuem me encarando, me intimidando. Eu gosto disso agora. ... Mais uma vez obrigado. Vocês estavam certos sobre mim. Mas eu estou feliz. Estou orgulhoso de mim mesmo por ser esse homem sem o talento que vocês exigiam. Depois de tudo o que foi dito, estou certo que uma cabeça vai rolar: a minha. E eu não dou a mínima.

3 comentários:

descrição. disse...

;)

Unknown disse...

faço suas as minhas palavras

Unknown disse...

por serem as mesmas minhas, entao como vc ja usou antes, sao suas as que seriam minhas... ¬¬