sábado, 26 de março de 2011

Um divisor de lodos

Publicado originalmente em : http://www.questaodecritica.com.br/2011/03/um-divisor-de-lodos/


Artigo sobre o processo de criação da peça Os Catecismos segundo Carlos Zéfiro



Foto: Marco Novack.


Não acredito num teatro em que a poesia é aberta. Prefiro mil vezes que o espetáculo me convide e me instigue a encontrar poesia em meio ao lodo. Ou melhor, em meio ao que o límpido bom senso considera lodo.

Em 1997, quando produzimos nosso o primeiro espetáculo da Vigor Mortis, utilizávamos o universo insano e doentio dos serial killers para falar da necessidade de mudança do status quo. Em 2004, Morgue Story, uma comédia de humor negro regada a sangue e situada num necrotério, falava do medo que todos temos de morrer só. Graphic foi nossa produção de 2007 e em momento algum explicava objetivamente a dificuldade que temos em sustentar nossas escolhas para uma vida que tenta promover o raro encontro entre prática e felicidade. Hitchcock Blonde não falava de cinema, mas sim de desejo, assim como Nervo Craniano Zero abusava de violência explícita para mostrar três personagens que criavam por vaidade e não por ter algo a dizer.

Este uso da obra como metáfora pode parecer corriqueiro, mas há mais do que frequentemente uma compreensão equivocada do que Kantor diz, que não é possível contemplar uma peça de teatro como fazemos com uma pintura, pois vemos concretamente o que está ali. Se esta afirmação pode dar a impressão de que o teatro é um raso reality show, em outro momento o próprio Kantor afirma que em cena deve-se criar uma realidade concreta. A ilusão deve desaparecer como ilusão. Deve sim existir como forma concreta. O efeito especial – no cinema – é potente quando ele não existe, quando não é percebido como efeito, mas sim como a realidade concreta daquele ambiente.

Os Catecismos segundo Carlos Zéfiro sustenta esta crença em um espetáculo que, usando entre suas ferramentas o compartilhamento de prazer com o público, não é mera celebração ao onanismo, mas procura ser uma viagem para dentro das ambiguidades causadas pela culpa judaico-cristã na sexualidade em nossa cultura. No entanto, em momento algum eu seria capaz de usar estas palavras de forma tão objetiva assim, pois faria soar como um acadêmico de gravata borboleta discursando a uma comissão de reitores. Não tenho essa ambição, sou antes de mais nada um diretor de teatro e essa não pode ser a forma de meu meio. Sou indireto.

Quando estava realizando a pesquisa para a criação do texto teatral desta peça, cheguei em um momento de crise no qual estava preso a uma história real. Só que, ao contrário do que fiz em Manson Superstar (2009/2010), não tinha a intenção de criar um ambiente documental, mas o da realidade fantasiosa que encontra o seu próprio ambiente concreto. Qual a ponte para escapar da realidade documental?

Não foi à toa que a crise se estabeleceu antes de minha derradeira entrevista do processo de pesquisa. Foi com Juca Kfouri, o jornalista que se propôs a descobrir a verdadeira identidade do até então elusivo Carlos Zéfiro. Seu desejo e paixão em criar esta aventura para si mesmo tinham a força dramática para evitar a simples exibição do fato.

A partir deste elemento criou-se a realidade concreta do espetáculo. Uma realidade que depende menos da mimesis da história real e mais da criação de um novo ambiente mítico onde os personagens – por ventura – são baseados em pessoas que existiram e existem.




Foto: Marco Novack.

Com o texto em punho e o processo de ensaio com o sinal verde, esta ideia passa a procurar seu caminho ao estado concreto de uma nova realidade através do corpo e voz dos atores e atrizes. O peso da lembrança frequente de que aquilo era uma história real insistia em recair sobre o elenco e a tentação em criar o personagem pela reprodução mimética era grande. Nas notórias palavras de John Ford: entre a realidade e a lenda, mil vezes a lenda. A lenda é em essência a realidade concreta da essência do teatro. Isso se estabeleceu desde Ésquilo e permaneceu pelos tempos reencarnando em Hamlet, em Blanche DuBois, em Dorotéia e também em outras ramificações da narrativa mitológica/dramática como em John Wayne ou Bruce Wayne. E quando a discussão chega em Bruce Wayne ou Hal Jordan ou Peter Parker… cheguei em casa.

Carlos Zéfiro era Clark Kent. Um anti-herói com dupla identidade tentando equilibrar os anseios pelo amor de Lois Lane (a vida pacata em família) e seu trabalho como jornalista no Planeta Diário (ou em nosso caso no Ministério do Trabalho) em contraponto às aventuras ao salvar a Terra (no caso de Zéfiro, um mais prosaico apreço por serenatas e mulheres) e seu uniforme costurado em Krypton (o codinome Carlos Zéfiro das revistas).

Não é preciso falar sobre as duas identidades de Clark Kent. Tarantino já fez isso o suficiente em Kill Bill. No entanto, temos aqui um ambiente que trafega entre a mitologia dos quadrinhos (pela própria mídia de expressão de Zéfiro), pela dramaturgia típica do melodama hollywoodiano da década de 40 (muitos catecismos eram adaptações de filmes americanos,com a diferença de que suas imagens vão além do fade out após o beijo) e pela narrativa de mistério da busca pela identidade de um anti-herói.

Gosto de me apropriar das palavras play/jouer/spielen por suas múltiplas possibilidades de tradução: Jogar ou interpretar ou tocar (um instrumento) ou brincar. Os Catecismos segundo Carlos Zéfiro se encontram nesta linha crepuscular da idade das descobertas da adolescência. Os jogos se transformam em dogmas. A brincadeira se transforma em interpretação. Os atores se inspiram por heróis. Jandir Ferrari e Martina Gallarza explicitam as vozes dos filmes dublados de aventura de nossa infância, mas usando o texto sem vergonha dos catecismos zeferianos. Irene, a amante de Zéfiro interpretada por Clara Serejo, carrega em um momento a voluptuosidade de Mata Hari e, em outro, é puxada à realidade de uma mãe solteira. O dono da banca de revistas, interpretado por Marino Rocha, se inspira no fiel “Q”, trazendo e sustentando Ideias para as missões de James “Carlos Zéfiro” Bond. Este agente-secreto de identidade desconhecida (Rafa de Martins) se alterna entre as aventuras na noite carioca entre garotas e música… e a realidade do trabalho no funcionalismo público brasileiro e a sua solitária esposa. Serrat (Mariana Consoli) é a esposa mais que real, pois escolhe viver no mundo de fadas para não conflitar com o da realidade. Juca (Leandro Daniel Colombo) é o detetive que amarra todos estes suspeitos em uma investigação de Poirot ou Holmes.

Com estes ícones em mente, entramos num universo – não tanto como Alice entra na toca do Coelho, mas sim como Indiana Jones entra no templo onde está a Arca da Aliança. Nos resta agora enfrentar o medo das cobras (sem intenção inicial de trocadilho) e eu encaro esta montagem como um particular divisor de águas, ou melhor, um divisor de lodos; um divisor entre o sangue e o sêmen, entre a adolescência e a maturidade, entre o jogo e a concretização de uma fantasia.

Paulo Biscaia Filho é diretor da Cia. Vigor Mortis. Escreveu e dirigiu a peça Os Catecismos segundo Carlos Zéfiro, atualmente em cartaz no CCBB-RJ.

Informações sobre a Cia. Vigor Mortis no site do grupo: http://www.vigormortis.com.br/home/Home/Home.html




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We gonna raise, trouble, We gonna raise, hell.

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