sábado, 2 de junho de 2007

Espiar e Expiar


Gazeta do Povo, 02 de junho de 2007

PENSATA publicado na edição impressa de 02/06/2007

A arte se alimenta das falhas humanas
por PAULO BISCAIA FILHO*

Dez anos atrás, quando fizemos PeeP – Através dos Olhos de um Serial Killer (montagem de estréia da Vigor Mortis), escolhi o tema de assassinos seriais como uma ferramenta dramatúrgica ao Grand Guignol, a linguagem que leva o nome do famoso teatro de horror de Paris que criou pesadelos para as platéias da década de 20. Os medos possíveis no início do século vinte eram completamente diferentes dos medos de hoje. Vieram a Segunda Guerra e a Guerra Fria e as manifestações de medo e violência mudaram radicalmente os sentimentos de pavor de todo o mundo. Não que antes não houvesse maníacos assassinos, claro. Podem-se contar as barbáries de Elisabeth Bathory ou a casa de horrores de H.H. Holmes ou mesmo a pavorosa carta do lunático Albert Fish, na qual ele relatava com alguma poesia como matou e devorou uma menina de nove anos, com o detalhe que a carta foi enviada à mãe da garotinha. Isso sem falar em Febrônio Índio do Brasil, mas esse brasileiro, primeiro interno do Pinel, que matou diversas vítimas na década de 20, merece um texto à parte.

O medo grandguignolesque estava agora, portanto, não mais nos distantes campos de batalha ou em fantasias sobrenaturais. O grande terror estava na casa vizinha. Nos anos 50, um certo Ed Gein veio às manchetes de todos os jornais americanos e posteriormente motivou a criação de uma série de obras marcantes como Psicose, O Silêncio dos Inocentes, O Massacre da Serra Elétrica e alguns outros filmes e livros que usaram os atos de Gein como base para suas narrativas.

O que Gein fez foi lançar um terremoto na imagem de paz suburbana norte-americana. Sua comunidade no meio de Wisconsin, repleta de tortas de maçã e vizinhos sorridentes, considerava Gein um sujeito estranho, mas muito simpático. Até que foi descoberto em sua casa o cadáver de uma mulher, decapitado e pendurado de cabeça para baixo com as pernas abertas e um corte que ia da vagina ao esterno. Além disso, foram encontrados ali acessórios e vestimentas feitos com pele e ossos humanos que Gein ou arrancava de suas vítimas (oficialmente “apenas” duas) ou das dezenas de corpos que ele desenterrou do cemitério. Gein, um filho obcecado pela mãe, estava tentando se tornar ela mesma.

O que nos fascina nesses atos tenebrosos é ver o homem ultrapassando limites que julgamos moralmente intransponíveis. Quando o gângster de Chazz PalmIntieri em Tiros sobre a Broadway, de Woody Allen, é questionado por John Cusack sobre a imoralidade do fato de ter dado um tiro numa atriz só por que ela era ruim, o capanga responde: “O verdadeiro artista não tem moral!”. O assassino também não tem. Essa quebra de valores assusta, mas é socialmente necessária. Seria melhor que fosse apenas pela arte, mas a humanidade é muito mais rica e cruel do que qualquer obra de Pollock poderia criar. Aliás, a arte só consegue existir se puder se alimentar das falhas humanas.

Gein era o narrador/protagonista de PeeP, interpretado magistralmente na época pelo meu colega de 10 anos de companhia leandrodanielcolombo. Ele representava o homem aparentemente comum que entra em um furacão de valores sobre o olhar ao outro e ao mundo. No caminho de Gein, imagens e textos de outros assassinos tanto ou mais cruéis do que ele: Myra Hindley (que gravava o som de suas vítimas durante a tortura antes da morte), John Wayne Gacy (um comerciante e palhaço em festas beneficentes que guardava os corpos de suas vítimas sob o piso de sua casa), Jeffrey Dahmer (um solitário que matava homens e guardava partes de seus corpos em casa para lhe “fazer companhia”), entre outros. PeeP era uma viagem pelo inconsciente coletivo de mentes perturbadas. Um pesadelo dos bons valores em um redemoinho de mortes. Uma série de manifestações radicais de sentimentos humanos sendo expiados por atos monstruosos.

Este título, Peep, vem do inglês “espiar”, “dar uma espiadela”, como se faz em cabines de peep show. Um breve olhar sobre um universo de transgressões morais, sociais e sexuais que contemplamos apenas a distância. É como passar ao lado de um acidente de carro. Não queremos olhar, mas não agüentamos e damos uma olhada para satisfazer nossos desejos escondidos e nossa curiosidade sobre realidades distantes de nós, ou que pelo menos desejamos que permaneçam distantes. Estes filmes e peças são ambientes de pesadelo controlados. Um trem-fantasma aonde vamos experimentar um pouco de masoquismo, um pouco de sadismo e um pouco do que sabemos que jamais seremos capazes de fazer. Essa fascinação é eterna. Experimentamos – artistas e público – a fascinação por atos impensáveis. A visita “turística” a estes espaços ajuda até mesmo a manter nosso equilíbrio emocional se a obra sabe discutir o assunto adequadamente. Todos precisam desse equilíbrio. É por isso que matamos pessoas na Vigor Mortis diariamente. No palco, é claro!!!

* Professor da Faculdade de Artes do Paraná e diretor da Vigor Mortis, companhia teatral produtora de Morgue Story, Graphic, Garotas Vampiras Nunca Bebem Vinho, entre outras.

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